terça-feira, 5 de março de 2013

Cavernas de Bhaja e Karla



Antes de cair de cama, quando o organismo se revoltou com o tempero indiano, fui para fora de Pune. Uma hora de estrada, em direção a Mumbai, fui até Bhaja e Karla caves. Meu último passeio turístico histórico religioso. Em Karli, as cavernas de Bhaja recebiam a visita de apenas um casal de turistas. O lugar, um grupo de comôdos ao redor de um grande templo de teto arredondado usado para rituais religiosos, é protegido por uma portão frágil e cercas cheias de furos. Segundo historiadores, Bhaja teve sua importância cultural e religiosa na rota comercial entre o sul e o norte da India no segundo século AC. Dentro das cavernas pode-se ver inscrições e desenhos.




Religião e comércio não deixam as cavernas de Karla vazias. Em volta da escadaria que leva a um dos mais antigos templos budistas, do Século 2 AC, barracas se amontoam. Mendigos se apóiam nas muretas e chamam com as mãos esticadas. 


Uma banda tinha fôlego e a cada degrau aumentava o volume dos tambores e metais. A turma dançava. Um templo semelhante ao de Bhaja, mas ainda maior, tem em sua entrada, esculturas de elefantes, casais e mulheres peitudas dançando. Nas colunas, novas mulheres sentadas em elefantes. Ao lado, cavernas são alvo de mijo e depredação. 

EmPune


Pune é cidade grande. Vizinha à imensa Mumbai uns 200km. Lugar de investimentos. Empresas de Tecnologia da Informação indústrias multinacionais, Shopping Centers e Universidades. Em uma volta pelos arredores é possível ver dezenas de quilômetros de quarteirões de prédios em construção. Alguns minutos de estrada e os prédios são substituídos por condomínios fechados com nomes acabados em Garden, Golden, Park...

Tem grande concentração de moradores estrangeiros. Os turistas também chegam. Prova disso é a quantidade de hotéis estrelados em forma de arranha-céus ou prédios de desenhos arredondados e cores metálicas. Como quase toda cidade indiana, o turismo religioso também é carro chefe, mas em Pune ele tem outro estilo. Não são tendas no meio do mato, em terrenos baldios, sem banheiros, lama e poeira de brinde. 


Em um dos bairros nobres da cidade, Koreagon Park, um grupo de ruas que se parece com o jardim Europa com residências parecidas com as do Alto da Boa Vista, está o Osho International. Não é um Ashram, não é um hotel. É um resort que ocupa centenas de metros arborizados do bairro, protegidos por cercas de mabu pintadas de preto e guaritas com policiais, daquelas parecidas com as do Jardim Europa, que tiram a calçada dos pedestres. Para uma visita de algumas horas, com direito a participar da meditação, cobra-se 20 euros. O visitante ainda tem que entrar com uma roupa cor vinho, que eles vendem por 10 euros, mas no camelô na esquina da rua, sai por 3 euros. “Mas não tem a mesma qualidade”, diz o francês mal humorado, na portaria com placas de mármore preto.

Nas ruas, porsches e carros japoneses dividem espaço com búfalos que param o trânsito em um desfile que poucos dão atencão. Pelas ruas os casais andam de mão dadas, arriscam abraços e beijos, sem causar espanto alheio. As mulheres combinam calças jeans apertadas e ombros de fora com rostos cobertos. Entre os jovens, o hindi perde espaço para o inglês e as lojas de fast food tomam espaço das barracas de samosa e parantha. O progresso do oeste não costuma das brechas.



Entre os prédios novos e envidraçados, casas de madeira da tradicional arquitetura indiana aparecem carcomidas nas ruas transversais, onde a terra retoma espaço do asfalto, as crianças gritam em frente à mesquita e alguns olham curiosos para o turista com uma máquina fotográfica nas mãos.

No trem


Quase três horas da manhã. Já cochilei na sala de espera e agora encosto minhas malas no chão cuspido da estação de Mhugal Sarai, uns quase 30 quilometros de Varanasi. O trem está marcado para essa hora, essa plataforma, mas não aparece. Resmungo e olho para duas plataformas à frente. Ele está lá. E falta muito pouco para partir. Corro igual um maluco, junto com mais um trio repleto de caixas de papelão. Atravesso a passarela e ainda na corrida, pergunto para um moleque onde está o vagão B1.

Estou na classe AC 3 (ar condicionado 3a classe) pela primeira vez. Tudo escuro e silencioso, as cortinas estão fechadas e tenho que ir abrindo uma a uma para achar minha cama. Torço por uma cabine ainda vazia, mas a minha está cheia. Só a cama vaga. Divido ela com a mochila e durmo. Do lado, um grandalhão ronca vertiginosamente. Lembro do Berna em Londres. Seriam 24h de viagem.

Acordo 10h com Rainbow Country. Na sequência, Soul Rebel, Sun is Shining, Revolution e Hammer. O dia começava bem, mas fiquei sem saber de onde vinha a música. Entre uma espreguiçada e outra, reparava nos meus compenheiros de viagem. A impressão era de serem quatro irmãos, dois homens, que pareciam Sikhis, com um pano preto amarrado na cabeça, e duas meninas. Um deles carregava um punhal na cintura, com cabo de marfim.

O outro integrante estava na cama alta, do meu lado. Trabalha na Indian Railways, é responsável por uma pequena estação em Karnatka, soube quando já estava de pé e com cama perdida. Durante o dia, as camas debaixo viram bancos para todos na cabine. As camas do meio são fechadas. Só as de cima sobrevivem. O lugar era apertado para tanta gente e mala. Cada movimento ou ida ao banheiro exigiam planejamentos, perguntas e respostas. Foi aí que pedi ao cara da cama de cima para trocarmos de lugar. Até agora não sei se ele aceitou só por educação com forasteiros, ou não. Mas fui para cama de cima feliz da vida.

Peguei algumas frutas e um croissant que havia comprado em Varanasi e fui comer em outro lugar, perto dos cheirosos banheiros, em uma das paradas.
Ele voltou a se mexer e logo ganhou velocidade. Abri a porta do trem, o vento logo soprou forte na minha cara. O dia era bonito, de sol e paisagens rurais. Sentei na escada, coloquei os pés para fora, como os vagabundos faziam nos vagões de carga.

 O trem passou por uma ponte de ferro. Ouvi um longo rangido, a água verde do rio logo abaixo dos meus tênis. Voltamos para terra, os vilarejos de casas de barro, pequenos templos em meio às plantações, os morros verdes e amarelados ao fundo, meio esfumaçados pela poeira, alguns riacos de leito seco. O trem deslizava por junções de trilhos, a fumaça preta com cheiro de curry e a buzina grave, comprida. Estava a caminho de Pune.

Entre peregrinos e chuva


Não é difícil se perder em Varanasi. Se você ainda está na disposição, então. Fui engolido por multidões de peregrinos que rumavam em diversas direções. Por alguns momentos, nem tive opção de decidir pra que lado iria. Acabei na rua do mercado principal, com suas lojas de temperos, cheias de potes de vidros coloridos e pequenas gavetas. Em outra viela, o brilho dourado dos braceletes, brincos nas bancas de bijouterias. A chuva caía fina e ajuva a emporcalhar ainda mais a velha e louca Varanasi. O chão tornou-se uma pasta de merda e lama escorregadia, misturada com lixo.



 Em uma das maiores ruas, que desembocam no Ghat principal, uma fila de peregrinos, de alguns quilômetros, entre estacas de madeira e policiais com metralhadoras e varas de bambu, aguadavam sua vez para chegar ao Golden Temple. O fim da tarde se encaminhava e entrei num barco a remo para visitar o Ganges, a ganga. A noite caiu e não consegui concluir o plano, que era ir até a outra margem. Fiquei no passeio comvencional, com direito a fumaça no burning ghat e velas e oferendas, que me deixaram com peso na consciência, nas águas do rio. Também vi a iluminada Pooja, o ritual de orações e oferendas no grande Ghat.

Em meio a um apagão, fui assistir a show de música e dança indiana clássica.
Caminhei pelas ruelas escuras e lamacentas atrás do Ashram onde iria acontecer o concerto, pelo Khumb Mela festival. Os guias eram os amarelos cartazes grudados pelas paredes, iluminados pelos celulares. Na busca, me juntei a mais um grupo e um morador nos levou até o lugar O concerto de uma espécie de violão, diferente do tradicional, e tabla, ocorreu em um pequeno palco, um tatame de pano claro. As pessoas se esparramando por ali. Todos estrangeiros. Reparei em dois ou três rostos conhecidos, possivelmente de Allahabad. No espetáculo de dança, parte do tatame foi retirado e o dançarino apresentou-se acompanhado por uma dupla de músicos.


Eram 6h30 da manhã e levantei e corri pela escada e cheguei ao terraço. Uma mulher fazia Yoga. Alguns macacos caminhavam nos muros dos terraços de prédios ao lado. Outros turistas acompanhavam o alvorecer. O rio estava rosa e os barcos pareciam esfumaçados, de longe.

Organizei a mala e tomei o café da manhã com quatro macacos, que literalmente, colaram na grade do meu quarto. Escutamos Jorge Ben e nos alimentamos com uma dúzia de bananas que havia comprado no dia anterior. Eles foram embora e eu também, após o check out.

No dia chuvoso, me disseram nas ruas para não reclamar. “Quando cai água no seu último dia em Varanasi, é sinal de que vai voltar”. Vasculhei algumas lojas de livros, incensos e chás. Aproveitei para retomar alimentação nas barracas de rua, para o azar do meu estômago.


Encerrei no Karki's Bar: um sobrado com almofadas no chão, mesas baixas, pouca luz, pouca pintura, um grande NO PROBLEM nas paredes e incrível demora para servir um chá de gengibre com mel e limão. Entre um pipe e outro, escutava o papo alheio. Poderia ficar horas por ali, se pudesse. Não podia. Corri para o hotel. Tinha que pegar as malas e ir para a estação.

Varanasi, Benares, Banaras...



Ainda não havia passado das 9h30, mas o sol já era forte em Varanasi. Sai da estação e peguei um rickshaw. Ansioso, parei numa rua de comércio intenso, a Bengali Tola, a última nas proximidades do Ganges onde automóveis podem trafegar. Me aproximava da área central de Varanasi, a mais antiga cidade da India.

Adentrei às vielas e corredores rapidamente, desviando meu corpo de quase 120 kg (eu e mochilas) de pessoas, cachorros, vacas, bicicletas e motos. Ainda firme, tentava reparar nas construções, no jeito dos moradores. A cada viela mais próxima do rio parecia que as casas tinham camadas de poeira cada vez mais maiores nas paredes. A chamada “cidade viva mais antiga do mundo” borbulha com o Khumb Mela, o festival religioso que já tinha visto em Allahabad, cerca de um mês antes.



Tinha o nome de três hostels e fui procurá-los. Cheguei a uma das referências que tinha, o Shiva Café, ponto de encontro dos estrangeiros. Enfiei a cabeça pela janela e perguntei pelos hostels. Os dois primeiros estavam lotados para quem oferecia menos de quatro dígitos. A terceira opção, o folclórico Moona's, mas também estava cheio. “Você pode ficar no chão do salão lá de cima, custa 50 rúpias por dia”, disse um jovem hippie canadense com um tambor na mão, arranhando um português. Mas sem saco de dormir me desanimou e voltei para as ruas.


As horas passaram e conheci uns 10 quartos, na maior parte do tempo após ser levado por algum “funcionário de hotel”. Mas todos com preços além do orçamento. O cansaço venceu e aceitei o quarto mais caro da viagem.
Apesar do preço e das escadas, o lugar tinha o ganges na janela, que aparecia graças a uma fenda entre dois prédios em frente. Melhorou na manhã seguinte, quando o sol levantou exatamente no local, fazendo o rio brilhar bem na minha cara.

Pela viela principal, que entendi chamar-se CT Road, lojas de de discos e de instrumentos musicais indianos seduzem os turistas, que aproveitam a estadia para aprender algumas notas de cítaras, sarods. O instrumento mais procurado é a tabla, tambor típico da música local. Conheci algumas pessoas que fazem aulas todas as vezes que passam por Varanasi.




Mas é a religião que chacoalha a cidade. Na entrada do principal Ghat, à beira do Ganges, o comércio da religião é o que domina. Centenas de bancas, debruçadas nas escadarias, vendem kits de oferendas, imagens e outros souvenires de fé. Em toscas camas de madeira, homens oferecem massagens. Uma tropa pela beira do rio em todos os ghats vende passeios de barco. As crianças jogam críquete, outras trabalham duro, uma fila de mendigos esticam as mãos. De cócoras, grupos conversam enquanto seus búfalos e vacas banham-se ou são fotografas pelos turistas. Nagababas, os sadhus que vivem sem roupa, acampam em frente am ganges. Fumam charas e ganham dinheiro posando para os turistas. A cidade vive e morre no Ganges.


Perto dali, nos “burning ghats”, rituais de cremação são verdadeiras atrações e chama a atenção de locais e estrangeiros. Embrulhados em papel colorido e brilhante, os corpos chegam carregados por grupos de homens, que cantam, alguns batem palmas. Funcionários retiram troncos de enormes pilhas dispostas nas escadarias. A fumaça das fogueiras já escureceu as parades dos prédios em volta. As cremações não param. São cerca de dez fogueiras acesas ao mesmo tempo. Uma apaga e logo o funcionário, usando um pedaço de pau, vasculha as cinzas atrás de possíveis bens que o fogo não levou. E então, uma nova cama de troncos é montada para que um outro ritual comece. As fotografias são proibidas. Mas existem possibilidades no mercado, se você quiser um close. Barcos encostam para acompanhar as cenas. O cheiro da fumaça é estranho. Fácil de enjoar. Mas a banca de chai bem no meio do nevoeiro é um sucesso.

Resvalo em Kolkata


Dessa vez cheguei em Kolkata pela estação ferroviária de Howrah, a maior delas. Do outro lado do rio Hooghly. O sol da manhã já se impunha e reconheci alguns prédios na outra margem. Já havia estado ali à pé. Dava para ir caminhando até Sudden Street. Mas por puro cagaço, desisti de deixar a mochila grande no guarda volumes da estação. Teria que estar ali novamente às 20h para pegar o trem de Varanasi.  Peguei um taxi, já que rickshaws são proibidos de ir até ali. É a máfia taxista.

Tentei colocar as mochilas no hotel onde havia ficado, o Paragon. Mas negaram. Então fui ao Maria Hotel, onde já deveria ter ficado da outra vez. Um casarão antigo e detonado, de portas duplas e grandes e com dois terraços no alto. Dei uma grana pro funcionário e pude guardar as malas e usar o banheiro. A saúde não estava lá essas coisas. Tomei café da manhã ocidental e usei a internet numa lanchonete na mesma rua. Fui até a agência que me vendeu os bilhetes de trem para Puri e Varanasi, precisava pegar o número do acento da viagem noturna. Os números só são liberados algumas horas antes da partida. Na agência, perguntei sobre trens de Varanasi para Mumbai para deixar tudo preparado na hora de finalizar a viagem. 

Os trens estavam lotados. Corri para o escritório da Indian Railways para tentar um lugar na cota para estrangeiros. A fila era grande, mas organizada por senha. Aos poucos, os gringos vão se conhecendo e trocando informações sobre destinos. No tempo em que estive ali não vi um sair sem sua passagem arrumada. A minha saiu rápido e chegaria em Mumbai algumas horas antes do avião.


Resolvi voltar andando. Tinha pouco mais de três horas para voltar à estação. Fui em direção à Esplanada de Kolkata. No caminho, ainda mandei um chai e uma salada de frutas e legumes. Perto da curva onde entraria para retornar a Sudden Street, uma praça cheia de esculturas e bustos de personalidades. Em uma das esquinas, Marx e Engels, sempre lado a lado, caminham em direção ao pôr do sol.

Enrolei e jantei na mesma lanchonete com internet e parti para a estação, que estava abarrotada. Sem atrasos, encontrei meu lugar no trem na lista que vem grudada do lado de fora dos vagões. De manhã, estaria em Varanasi.