Contava o trigésimo segundo quarteirão, desde que tinha entrado no ônibus. O primeiro da trajetória até a casa. O sinal tocou. Que irritante era essa avenida, com pontos a cada três metros. Acumulavam todas as linhas naquele corredor.
"É uma política para não atrapalhar o bairro todo. Sacrificamos uma grande via em prol do restante", declamou o secretário ao jornal. Para ele, esse papo é uma palhaçada. Claro que o motivo é financeiro. É mais barato colocar todos os pontos e ônibus aqui para a manutenção. Mais fácil para a companhia de tráfego e as empresas mafiosas do transporte público montarem os trajetos. Pilantragem.
Era uma irritação quase incontrolável, com suor nas mãos. Na cabeça: porque eles fazem isso? Porque deixam eles fazerem isso? Porque deixamos? Porque eu deixo eles fazerem isso e uso essa gravata amarela com o nome da maldita loja de eletrodomésticos em que trabalho, que enfia juros em velhinhos. Até nos velhinhos! Todo dia era assim.
Desistiu da janela e voltou-se para o meio do busão. Pelo menos essa hora não estava abarrotado. Porque ônibus em uma faixa só? Porque não mais metr...De novo, não. Olhou para a porta, que se abria. Uma mochila apareceu primeiro.Logo depois uma cara com barba e olhos tranquilos, cabelos um pouco grandes e uma imensa mochila em suas costas.
Observou o cabeludo comunicar-se com o cobrador e decidir ficar na dianteira do ônibus. Mochila num banco, mochila gigante no colo e cara grudada na janela. Ele estava com fone de ouvido.
Quis ter lembrado de comprar um fone novo. Havia duas semanas que estava sem música. - Amanhã, balbuciou. O que será que o cabeludo ouvia? Tinha reparado que ele mexia levemente a cabeça, pra trás e pra frente. Rock, Rap, Reggae...será que esse cara tá escutando ópera? Ópera nem era tão ruim. Escutava na casa do vô, na macarronada de domingo. Puta que pariu! Rock, rap e reggae é bom demais. - Boa cabeludo, pensou.
- E essas malas? De onde esse cara tá vindo? Ele não ta indo. Já é meia noite, tá no sentido bairro. Puxou rapidamente pela memória a última vez que havia viajado com duas malas. Foi para a Bahia, 45 dias com uma namorada e uma casal de amigos. De ônibus. Na memória também viu que essa viagem marcou sua derradeira madeixa um pouco mais revolta. Dai, olhou para o seu reflexo na janela e deu uma risada irônica, olhando para o cabelo penteado dos últimos nove anos.
Não precisou baixar a vísta para recordar da gravata amarela. Porque tinha feito contabilidade, se a vontade era outra? Porque ainda mora com seus tios, se já podia estar em um cafofo honesto? Voltou a se concentrar no viajantecabeludorockeiro.
Concatenou as ideias: não estava queimado o suficiente. Bahia não foi. Nem em Ubatuba.
- Quantos reveillons já passei em Ubatuba, sussurrou pra dentro. Imaginou que o cara teria voltado do exterior. O Barbudo podia ter ido fazer mochilão na europa e ásia, que nem um primo seu fez, antes de ir para a faculdade. Na volta, decidiu estudar psicologia. Lembrou das festas do primo na Psico e das suas, na Contabilidade. - Firmeza o barba, pensou.
Seu ponto estava próximo. Levantou-se no mesmo momento em que o rockeiroviajantecabeludofirmeza atravessava a catraca. Apertou o botão e cem metros depois, a porta se abriu. Desceu e acelerou o passo.
A porta fechou e logo o sinal foi acionado novamente. A imensa mala lhe cansava os ombros, além da mochila menor e pesada. Coçou a barba, com cara de desaprovação própria.
- Putz... devia ter perguntado pra esse cara da loja de eletrodomésticos sobre uma máquina de lavar? Porque não fiz isso? Porque ainda lavo a roupa na minha mãe?Puto da cara, desceu e acelerou o passo.
Um comentário:
gostei demais...
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