quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quinta-feira


- Bom dia.
- Bom dia, tudo bem ai?- disse pausadamente, enquanto espreguiçava-se devagar.
- Tudo. Nossa, meu nariz tá completamente fechado. Parece que cherei.
- Não...isso a gente não fez.
Ela levantou, ficou em pé na cama, se enrolou no lençol e pulou para o chão. Na cozinha, pegou um copo de água. - Quer água?
- Por favor...vou fazer um café. - ele resmungou, enquanto abria a janela. - Que puta sol.
Encostada no batente da porta da cozinha, observava a sala do apartamento. Ele apareceu com um sorriso e os cabelos desgrenhados. Deu um gole de água, passou a mão na cintura dela, enquanto seguia para pegar o pó de café no armário cor de sangue.
- Tá com dor de cabeça?- perguntou, gentil, com duas aspirinas na mão.
Ela balançou a cabeça, negando. Aproveitou e esticou o braço para ligar o rádio. - Posso?
- Claro. Café forte ou fraco?
- Tanto faz. De qualquer jeito é necessário. Tá um solzão mesmo.
O rádio cantava "...Can't see where I am going/I will get to my destination..."e ela começou a dançar. O lençol já era um vestido, amarrado no pescoço.
De esgueio, com as mãos ocupadas e na frente do fogão, observava os passos da moça. Adorava olhá-las fazendo isso.
Levou as duas xícaras para a sala. Ela rodopiava, cantando cada pedaço da letra sem emitir som. No terceiro gole já se mexiam juntos..."lalalalala/I don't know where I am going to..."
-Vamos para a praia. - Sentenciou.
- Agora? Vamos. - ela respondeu, sorrindo e com a xícara quase na boca.
Enquanto a canção acabava, ele enfiou os pés no chinelo e botou uma camiseta em cima dos ombros. Não esqueceu da carteira, que estava na mesa. Rápida, pôs o vestido, as sandálias e a bolsa nas mãos. Saíram. Olhou por segundos para o apartamento, fechou a porta e passou uma volta com a chave. Desceram pelo elevador. Atravessaram a rua, entraram no carro dela.
- Posso te perguntar uma coisa? Não fica bravo?
- Não fico. Fala.
- Qual é o seu nome mesmo?

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Lettre

Cher camarade

Como estão as coisas por ai? Meu silêncio termina hoje. Foram dois meses intensos e quase mudos por aqui. Muito trabalho para arranjar trabalho. Tempo para andar de porta em porta e conhecer essa cidade.

Começa a esquentar em Paris. Aproveito os finais de tarde para encostar em alguma praça do Bagnolet e ler alguma coisa. Ontem comecei "Cal", romance que acontece na Irlanda em tempos de IRA e toda aquela maluquice em nome de deu$. Gosto dessas histórias de amor entre um jovem e uma balzaca. Ainda mais agora que eu já não posso ser o tal moleque nas mãos conhecedoras de uma coroa. Minha costeleta grisalha que o diga. Me resta a ficção.

Como você já deve saber, Ângela me deixou. Na verdade, deixou quase tudo por aqui. Deixou uma carta também em que explicava todos aqueles motivos que circundam a única e decisiva razão. Fiquei por um tempo somente na companhia de Paulo, nosso peixe que tem o nome de um ex-namorado dela. Me contou isso na carta também. Se encontra-lá por ai, mande um beijo meu.

Apareceu uma gaja por aqui. Pilar é o nome dela. 23 anos, portuguesa e estudante de história. Sabe muito e fico com vergonha da minha ignorância em alguns (muitos) momentos. Daí uso aquelas caras de "eu sei do que você está falando", que, misturada aos óculos e as já citadas costeletas meio brancas contornam o leve constrangimento, que é meu, somente. Chegou por volta de três semanas. Coloquei um anúncio de aluguel de quarto em algumas faculdades. Pilar pintou.

Olhos castanhos claros, cabelo meio amalucado, roupas coloridas e sardas...não é fácil, meu amigo. Passamos horas conversando pela madrugada e colecionando garrafas de vinho embaixo da pia do banheiro 30cmx40cm. E queijos, muitos. Achava o sotaque engraçado, agora já nem posso escutá-la dizendo Bom dia com aquele "d" Até o mau humor matutino vai embora mais cedo. Sigo na minha.

Outro motivo para o silêncio foi o computador, que quebrou. Acho que eles já chegaram na fase de produzir esses laptops descartáveis, como os celulares, ventiladores e bandas de rock.
To sem dinheiro para comprar e, por enquanto, voltarei a viver à espera de cartas. Sem preguiça por ai. E ai? Como estão as coisas? Se acertou com aquela maluca? É melhor mesmo. Só ela te aguenta. Ainda mais com essa barriga cheia de cerveja.


No trabalho a situação melhorou? Soube que mudaram a chefia toda. Politicagem boa ou ruim? quem mandou se meter com Brasília. É nisso que dá. Pelo menos, vê se consegue tirar férias e venha para cá. Traga Beta e arraste mais uns vagabundos para Paris. Ficam todos aqui em casa. É um desculpa para Pilar dormir comigo também. Continua tudo igual.



E antes que você me pergunte. Não, não estou mais procurando uma bolsa para a pós. Virei clandestino há algum tempo. Meu visto, o segundo, expirou há um mês e desse jeito a única vaga que consigo é no avião, deportado. Também não consegui fazer amigos franceses. Mas faço parte do "Ennemis de la Frontière FC", o time de futebol de imigrantes do bairro e arredores. Temos mais dois brasileiros, além de poloneses, sérvios, argelinos, camaroneses, chinas e um alemão, que é meio turco.

O time é tradicional. Deve ter uns 20 anos. Dois moleques que jogaram aqui há uns anos foram pegos pela polícia durante um jogo, mas, antes de serem mandados de volta para a África, receberam a cidadania e hoje jogam na seleção francesa.
Me mande feijão e cachaça. Aqui tem, mas é caro. E fotos, mande muitas. Algumas em papel, para eu colocar na parede da sala.
Não volto tão cedo. ( o correio vai fechar...)

A tout l'heure

terça-feira, 8 de junho de 2010

Hora da razão

Olhei bem no fundo do olho dela. Disse que eu era maluco de falar aquelas coisas. - Nem me conhece, olha onde está. Nessa hora eu já brincava com a fita azul no punho esquerdo e ela nem se mexia. Do contrário. Ela ria e enxergava minha boca. - Sua barba tem partes meio vermelhas ou é a luz? Disse que pintava e, pela primeira vez, ela riu alto e esqueceu onde estávamos.
- Gosto dessa frase, eu disse com o dedo apontado para cima. - Qual? Disse ela.
Eu disse: Não vamos fuçar nossos defeitos. - É meio brega, ela falou com sorriso de covinhas do lado direito da bochecha. - Igual essa fita azul calcinha, eu retruquei.
Quase caiu da cadeira, às gargalhadas. Elas fazem de propósito. Virou a palma da mão para cima, apoiada na coxa. - Ela tem um laço. É meio brega mesmo.
- Ela é da maior importância?
- Claro que não. Você é muito brega, ela disse. - Não acredito que vai insistir com isso. Doido.
Sorrisos curiosos e tímidos. Pedi mais duas cervejas...